quinta-feira, abril 28

Olhos para (não) ver




Hoje – num dos tantos dias que fiquei para dormir contigo – senti que não pertencia a este espaço. Ao teu espaço. Reparei eu – enquanto o sono não vinha - que o teu quarto é azul, que a tua cama é – demasiado – grande e que nessas fotografias que vais pregando nesse quadro de cortiça eu não estou em nenhuma.
Vê lá meu amor, foi preciso o sono não me vir, para ver os quão afastados estamos nós. Ou o quanto distante eu estou do lugar onde me queria achar - o teu coração.
As paredes do meu quarto – tão desiguais das tuas - estão cobertas com os teus retratos, estão cheias de poemas que para ti rabisco e ainda odorizam à transpiração que tu deixas - quando ficas para dormir. Já viste o quão próximo eu te mantenho de mim, como me deixo penetrar de amores por ti?
Mas tu não me envolves no teu espaço meu amor, e por isso eu decidi que ao amanhecer, já não estarei aqui para te ver acordar. Os meus passos não seguirão mais os teus, porque na tua alma não me encontro eu. Tu nunca quiseste calçar o amor comigo, calçar-te nele, nós os dois. Pequeno erro meu, aperceber-me só agora, do quão longe tu caminhas.
De hoje não passa meu amor, eu cansei-me desta melancolia de alma e fugi, sem fazer barulho, fugi ou preparei-me para me ausentar de ti. Mas tu acordaste – deve ter sido do meu choro sem lágrimas - e perguntaste-me onde ia tão cedo, e eu disse, que me ia embora. Não abonaste muito significado – mais uma vez – e eu repeti-me, vou-me embora meu amor, mas não volto, os meus olhos castanhos ternurentos, cansaram-se hoje de olhar para os teus. Esses teus, de olhar tão característico, de cor clara, de confiança experimentada, cansaram os meus, mais escuros, agora de criatura tão abalada.
Respondeste-me - sem olhar para mim - que nunca cá tinha estado. E eu chorei mais uma vez, mas sem lágrimas – como se eu fosse o mar e tu areia, areia seca, por já não ver mais mar.
Só agora percebo porque é que os meus olhos me pediram para não encontrar mais os teus. Roubaste a emoção. Cansaste-os com essas tuas palavras imponderadas. E eu olhei, uma última vez, para esses teus olhos, e disse, estou cansada que nunca tenhas levantado o rosto e tenhas aberto os teus olhos - tanto quanto pudesses - para veres que os meus, estes que estiveram sempre e só abertos para ti, meu amor. Estou cansada que nunca os tenhas levantado, para veres que estava aqui. Olhei-te tempo demais e cansei-os.
E devo ter-me tornado apática, porque não senti nada - mais nada - quando fui. Nem quando me escreveste um bilhete a dizer, devias ter tido mais robustez e permanecer comigo porque foi pelo teu olhar que me apaixonei. E eu podia ter-te respondido - mas nem isso a dormência me deixou fazer - um dia a esperança morreu no meu olhar, a minha esperança em ti, e os meus olhos fecharam-se, para nunca mais abrir. Pelo menos para ti.


Mais um, mais um que podia ser um recado meu para ti.

sábado, abril 23

Ferida aberta




Já não te vejo há tanto tempo, meu grande amor, que embora conhecendo-te de cor, já não sou capaz de decifrar o que assoberba esse teu coração inerte.
Um dia - em tempos - fui um pedacinho eu. Eu preenchi, docemente, todas as armaduras desse coração – ou qualquer coisa que dele sobrou – áspero. Fui eu - um dia – que limei essas armaduras sujas que te deixaram golpe e que cosi – sem saber pegar numa agulha - toda essa abertura que acabou contigo.
Sem trespassar qualquer ferida, fui eu - em tempos - que cuidei de ti, meu grande amor. Levei-te para casa, depois de te descobrir gasto – como se tu fosses uma sola de sapato velha - e amei-te com todo o afecto que possuí. Fui recheando essa cova que tinhas no peito e tornei-o um coração. Depois tentei fazê-lo crescer, crescer de amores por mim.
Sem curativos velozes, só eu com a minha paciência, fui esperando, que todo o amor que te ia dando me recompensasse. Eu tentei plantar amores nesse teu espalmado buraco - depois de o fazer coração - e esperei colher os proveitos. Esperei que chorasses os sinais mal costurados, que estes se rasgassem com as convulsões da dor, para que depois - juntos – pudéssemos perdermo-nos nos filamentos dos nossos corações e enovela-lo num só.
Em tempos - quando ainda acreditava - fui eu que te fui enchendo a alma, ao contar-te os sonhos. Todos os dias – quando amanhecia – acordava-te com o sussurro de um novo sonho. Um sonho bonito para fazer renascer um coração feio.
Mas já não te vejo já tanto tempo, meu grande amor, que já não sou capaz de decifrar o que te enche esse coração – que um dia foi feio. Apenas sei, que em tempos, foi a dor que eu curei - na esperança que um dia fosse eu – que encheu esse teu coração. Mas hoje, embora conhecendo-te tão bem, eu já não sei o que trazes nas entranhas da alma, porque tive de partir. Perdi-me a secar o teu desgosto e quando voltei a descobrir-me já estava a sujidade a penetrar-me na alma. Tornei-me amarga por tanta amabilidade que te presenteei - mas infeliz de ti que não tens culpa que te tenham aberto o coração.
Mas tu nunca ousaste retribuir os sonhos bonitos que te contei, disseste-me apenas palavras frígidas que me iam dilacerando o coração, e eu tive de partir. Eu tive de partir, porque eu também preciso que me encontrem e me levem para casa. Eu também preciso que me amem com todo o amor que possuem. Eu também preciso.


Este podia ser mais um recado meu para ti.

quarta-feira, abril 20

O bilhete II




E não é mesmo, sou uma boneca de porcelana preciosa em quem gostas de tocar - mas gostas de ser exclusiva. Deve ser por isso, por te deixar com tanta facilidade tocar-me, que conheces a minha pele – característica - melhor que ninguém. E se calhar, é por isso que já me vai incomodando menos que me toques. Porque tu me tocas sem magoar, olhas-me com uns olhos melosos, e passas dois dedos na minha cara, sempre muito ao de leve. Tu sabes, tem de ser leve para não marcar - atrever-me-ia a dizer que só tu sabes como me tocar - mas isso ia fazer como que quisesses trocar-me as roupas mais vezes.
Pois, minha querida pessoa, além de gostares muito de me tocar, gostas de me trocar as roupas, ou tirá-las por completo. Deve ser porque me gostas de desnudar a fragilidade, a única marca que me sobra, a única característica que ainda pertence só a mim.  E é quando me pedes para tirá-las – as roupas - é só aí, que sinto um bocadinho de receio de ti. Se tu soubesses – se pudesses compreender - que em cada roupa que visto guardo no bolso um sonho em visto, não ias mais gostar de me desnudar, porque cada roupa que me tiras – ou me tiram - é como um sonho roubado. E é por isso, que eu não gosto que me tires as roupas. Mas vou deixando – ainda que só de vez em quando - porque tu és a única pessoa que ainda não me magoo - ou das poucas.
Mas tu sentes o meu ar extraviado quando me tiras as roupas - só não sabes ainda porquê – e além do meu ar, tu vês, quantas marcas sujas ficam em mim, boneca delicada, depois de alguém – neste caso tu – me despir. E depois, ficas tu meia extraviada, um pouco como a minha conduta, tentas sempre limpar-me, sempre com cuidado mas de forma inquieta, esfregas-me as manchas que me vais deixando no corpo - depois de me tirares as roupas - mas nem dás conta que estas minhas nódoas são estilo borrão - semeiam.
Não sabes o que me custa dizer-te que não – ainda que só de vez em quando – mas magoa-me tanto, que me tirem as roupas. E no silêncio, no afogo da alma, no perder dos sonhos, eu pergunto, tu que nunca me magoaste gostas mesmo de me roubar sonhos, não é? Ou gostas que fique eu e a minha fragilidade? É por ser mais eu e a minha inocência? Porque tu não sabes ainda - que cada roupa traz um sonho no bolso, mas sabes que não há ninguém que sonhe como eu, nem ninguém que se perca tanto como eu - nestas roupas fantasiosas.
Tu gostas mesmo de mim e da minha frágil pessoa, não é? De mim extraviada por perder roupas - os sonhos sabes? É disso, não é? Minha eterna esperança roubada. Mas se calhar, minha querida pessoa, só se calhar, devias sonhar mais um bocadinho, para veres como dói quando nos roubam um sonho.

quarta-feira, abril 13

Um grande amor nunca morre



Continuei a amar-te – ainda que em segredo – mesmo depois de te ver largar o meu coração – sem escrúpulos - continuei, incrédula, no mesmo sítio que tantas vezes tu foste e vieste, nós fomos e voltamos, eu fui e regressei. Fiquei eu, lá, de coração na mão, mas ainda assim a amar-te – mesmo que agora sejas tu com o teu orgulho e tu sem alma alguma – na avenida que podia ser a nossa casa, e talvez por isso, eu tenha permanecido lá, quebrada, mas sempre a amar-te – porque um grande amor nunca morre.
E ainda aqui estou, a ensaiar a apatia, para quando voltares a passar nesta avenida, e ainda me vires de coração na mão – embora esse seja o mal menor – e depois reparares que na outra mão, ainda puxo um filamento do outro coração - o teu mais concretamente - mas estou aqui, enferma, a ensaiar a indiferença, para quando voltares à avenida – aquela que podia ser a nossa casa – para reclamares o todo do teu coração, não veres que me estás a matar.
E se ainda não me viste, aqui deitada, sem interior algum, eu queria que me matasses devagarinho – se não fosse pedir muito - ver-te puxar filamento por filamento, preferia que fosse ao de leve, tal e qual da maneira como chegaste e curiosamente da maneira como foste – de mansinho.
Mas enquanto não vens, estou aqui, com o amor que nos sobrou e pouco - ou nenhum - amor-próprio. Mas pouco importa porque quero mais salvar o teu coração do que o meu, porque sem o teu coração, já não sou eu.
E embora, às vezes, pareça que já não tenho forças, mesmo que tu não tenhas vindo à nossa avenida, renunciar o teu coração, parece-me a mim que estás a levá-lo, a arrancá-lo sem piedade – como se o teu coração fosse uma corda. Mas mesmo que pareça prestes a ficar sem qualquer filamento teu, eu não posso desistir, porque eu prefiro esfolar os joelhos, apagar a alma e cansar o corpo, para o resto de nós não se romper e para correr atrás do que sobra de ti – porque tu és o meu grande amor e um grande amor nunca morre.
Não importa se eu morrer, só não podes morrer tu, porque tu vais ser o que vai restar do nosso amor, como prova, que um grande amor nunca morre - pelo menos não de todo.
Depois disso, de morrer, eu já posso ir renascer num outro corpo, porque tu serás o meu grande amor, mas só neste meu corpo - ou no que resta dele. Preciso de conquistar um pouco de amor-próprio, depois de morrer, e só poderei fazê-lo noutro corpo longe do teu. Porque se não seria de novo uma tentação, quereria então eu morrer depois de nos apaixonarmos, e de pouco depois, ficar outra vez de coração na mão. E um corpo a ressuscitar de um amor deste, daqueles amores nunca morrem, demora muito, muito mais do que eu possa contar. Porque um grande amor nunca morre. E eu hei-de morrer.


Este podia ser um recado meu para ti.

sexta-feira, abril 8

O meu coração





Desde que vieste para perto de mim, o meu coração, aqueloutro que era acampado pelos limites do tempo, o meu coração que se arrebatava por um simples olhar apreensivo e se consumia na mesma efemeridade de uma alma tão liberta, este meu coração tão oco de molde, fechou-se quando te aproximaste.
Cerrou-se para ti, meu amor, este meu coração, – e todo ele feito à mão(que era) tão recheado de gesticulações simples, paixões pequenas, foi gostar de ti, este meu coração. Tu, logo tu, um ser tão intrincado, de jeitos espevitados, de modos tão desconformes e formas tão persuadidas. Não é estranho, ocupares o lugar tão especial e tão teu dentro deste meu coração? Eu que sempre desaprovei essas obstinações de marca tão própria que trazes embutidos na pela, fui na minha ingenuidade fechar-me para ti. Para ti, e nos limites do tempo.
Oh meu amor, por quem eu perdi os limites do tempo, estás tão penetrado em mim que já nem sei como é gostar de gestos imperfeitos, de sonhadores fugazes e de almas perdidas - todas estas ao mesmo tempo. Agora, tenho um só amor, amor esse que nunca morre, tenho amor ao teu ar complicado e à tua arrogância delicada, trago este amor de um extremo teu que nunca foi um ideal meu.
Oh meu amor, quando me cansava de uma das minhas paixões do ser, ou o vento levava-as ou eu soprava, mas tu moldaste o meu coração – e todo ele feito à mão - e se calhar por tal, ele elegeu-te senhor seu E isto, já não vai lá com sopros ou com ventos de tempestade, porque eu já esfreguei, varri, soprei...
Portanto, só podes ser pó. Melhor, és pó, eu limpo e tu voltas outra vez. Talvez porque moldaste o meu coração, em toda a sua imperfeição.

sábado, abril 2

O bilhete I

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Tens um ar de boneca frágil quando vestes o teu vestido cor-de-pele de mangas compridas, quando calças os teus sapatos rasos, aqueles que parecem de bailar, e quando não penteias os teus caracóis de leves madeixas.
Tens um ar de boneca delicada quando sais para a rua assim, porque além de desengonçada trazes um olhar meloso e enternecido e que me dizem tanto por serem tão silenciosos. Deve ser esse teu ar retraído que cativa as palavras, embora eu ache que realmente sejas muito boa nos silêncios, talvez porque fiques mais frágil - ou indefesa, penso-o antes.
Tens um ar de boneca fácil de partir, daquelas bonecas de porcelana que devem ser expostas para se contemplar a brandura – ou diria antes cortesia, se me pudesses perceber - mas nunca para se tocar. Nunca deveria ser permitido que te tocassem.
Tens esse ar de porcelana preciosa e deve ser por isso que não gosto que ninguém te toque. Pode marcar, não é? Sujar-te a alma ou partir-te o íntimo. Mas eu gosto de te tocar. Devia poder ser a única pessoa a tocar-te, tocar-te sempre que quisesse e afagar a tua pele característica. Devia poder trocar-te as roupas, mais vezes, ou de tirá-las por completo. Quando as tiro, quando me deixas, parece que te desnudo a delicadeza. E tu ficas meia extraviada porque achas que tal, é a única marca que te sobra.