sábado, maio 28

A segunda chamada








- Estou? Tu outra vez?


- Lamento que te tenhas esquecido que um dia te entreguei o meu coração. Entreguei-to quando precisavas de uma estrada para caminhar, dias depois de me pedires para desenhar pormenorizadamente caminhos contigo. Dias depois de me pedires para te amar com todo o amor que tinha.
- …
- Foste embora cedo demais, ainda tínhamos tanto para nos mover. Mas tu foste embora, foste sem dar tempo para interromper o gesto de te dar o meu coração. O meu coração que tantas vezes te serviu de tapete: estava no mesmo sítio quando chegavas e no mesmo sítio quando abalavas. Sabes, para mim foste embora cedo demais porque eu ainda tinha mais amor para te dar. Mesmo vendo que tu interrompias os gestos de forma brusca e me deixavas cair no chão – mesmo vendo a pessoa desengraçada que te tornavas.
- Eu sinto a tua falta.
- E é nessa falta que os desconhecidos por quem passas na rua se tornaram mais familiares que eu, não é? Eles que nunca te disseram nada e eu que supostamente te disse tanto, são-te agora mais comuns que a tua própria casa, não é? Quando é que o mundo se deixou virar assim ao contrário? Quando é que deixaste de sentir amor por mim?
- Eu ainda te amo.
- E foi nesse amor que um dia te esqueceste de voltares para casa, não foi? A tua casa, o meu coração. Foi por isso que a último movimento foi uma pisada para abalares por completo? E eu que ainda deixei que o meu amor te procurasse e trouxesse para casa, fingi esquecer-me que não te havias perdido, só para te dar mais um bocadinho de amor. E eu amor, que ainda fingi que tu me amavas, depois de revelar que foste o meu melhor companheiro de movimentos, quando nos movimentamos no amor – e sem movimentos sobrepensados. Se é que te podes lembrar.
- …
- Como não te lembras que eu fui a única a enlaçar as promessas, sem conhecer que tu não sabias o valor delas, quando um dia pediste para nos perdermos nas minúcias dos movimentos - do amor - sabia tão pouco sobre o valor que tu davas às promessas. E tive – sozinha - de aprender que estas são palavras, só palavras e nada mais, que se atiram contra uma parede para ver se colam, e só deixam de ser palavras para passarem a ser promessas depois de coladas mesmo – cumpridas sabes? E tudo para saberes que eu ainda estou a enlaçada com a minha e a interpretar - desesperadamente - todos os pequenos detalhes de quando nos movimentos juntos, para tentar compreender onde (te) falhei.
- Mas olh…
- Não digas nada, porque se calhar as promessas só são promessas até encontrares outra(s).


Chamada terminada.

sábado, maio 21

Cheiro




Ainda antes de comunicarmos, eu percebi, que as vezes que ainda me ia lembrando de ti – ainda que cada vez mais ocasional – era por este odor que ainda se fundia em mim. Deixavas sempre um pouco do teu cheiro por entre as minhas coisas – antes de partires - e às vezes, muitas quando não procurava por ele, manifestava-se. E talvez por isso, o teu cheiro, sempre se moldou bem em mim: conseguia nutri-lo sem repugnar.
Experimentei outros odores – quando um dia tiveste de partir – mas nenhum penetrou na minha pele, como o perfume que tu retiveste em mim. A exaltação da olfacção que estremavas em mim – ainda que também ela ocasional – nunca adormeceu na minha pele. E é por isto, que ainda me apaixono por ti, sempre que te vejo. Porque tal e qual como o cheiro, estás entranhado em mim.
Assim, ainda antes de comunicarmos, quando só te ia espreitando, por entre os cabelos, eu sentia uma saudade densa – aliás como o cheiro - como se tivéssemos passado demasiado tempo separados. Ainda quando só te via de longe – ainda sem termos voltado a trocar uma palavra – esta paixão que deixávamos morrer quando cada um de nós voltava para as suas casas, talvez por o cheiro atenuar, voltava a entranhar-se em mim, como se nunca tivesse ido, quando voltava a poder olhar para ti.
Mas depois de deixar de te espreitar por entre as cabeças da plateia e os seus (e meus) fios de cabelo, quando finalmente te encarei, chegámos perto um do outro e a conversa começou - como sempre - do mesmo modo: olhares tímidos a darem expressão a corpos a pedir odores. E tudo isto sem precisarmos de falar, só de escutar (perceber) o silêncio. Ou o cheiro.
Hoje – diferente da altura em que me questionaste - já sei responder-te qual é a primeira de todas as paixões. É o cheiro na pele. E o teu é único, atrever-me-ia a dizer o único que penetra completamente em mim. E que combina.
E aqui estou ou continuo eu: a apaixonar-me por ti sempre que te vejo. Ou então já sou possuidora deste sentimento sempre, mas quando estás longe, quando tens de ausentar-te, este atenua-se e só se volta a expressar quando te vejo. Mas vou-me lembrando – ainda que cada vez mais ocasional – de ti. Tal e qual como o cheiro – vou odorizando-o – mesmo com algumas constipações.

sexta-feira, maio 13

A primeira chamada


 
- Estou??
(Uma respiração muito forte e um barulho de fundo estrondoso para esconder as dúvidas das palavras)
- Estou?? Porque é que me estás a ligar?
- Hoje voltei ao – meu triste – ponto de partida: sentir saudades tuas. Hoje – mais do que o costume – lembrei-me de ti. Lembrei-me de ti, depois de me voltar a lembrar e a lembrar e a lembrar de ti. Fui pouco boa para mim.
- Mas…
- Sabes onde estive hoje? No início do nosso romance. Andei a evita-lo - está quase a fazer um ano – há quase um ano que fugia deste espaço e de ti, mas hoje fui lá – não fui sozinha – mas fui lá – mas só porque tinha de ir. Tentei na noite anterior apagar tudo quanto consegui sobre este – nosso - sítio mas assim que o vi – no dia a seguir, do outro lado da rua - a racionalidade fugiu-me. Vi todo o meu esforço da noite anterior morrer: mesmo sabendo que era um espaço de memórias, eu convenci-me que eram memórias ausentes. Ausentes do meu – novo – ser.
- Tu…
- Mas não deu, sabes? Enquanto apenas via o portão – do outro lado da rua – só me doía o peito- doía-me muito o peito. Mas eu já me acostumei a essa dor, é a dor da saudade, da saudade penetrante. Só não conhecia – ainda – a dor de se romper o coração. Tantas horas eu cosi este meu – pobre – coração, depois de nos afastarmos por quase um ano, e bastou o sítio – o sítio do início do nosso romance – para este se abrir de mim.
- …
- Eu não deixei o meu coração como tu deixaste que eu fosse, bolas porque é que ele me tinha de fazer isto? Passou quase um ano mas parece que não mudou nada: ainda se fazem romances bonitos ali. Só espero é que se façam finais diferentes – felizes sabes?

Chamada terminada.

sábado, maio 7

O bilhete III




Minha querida boneca de porcelana, talvez hoje seja o dia certo para te dizer o porquê de gostar da tua nudez – de te desnudar, sabes? Embora não saiba se me podes compreender, porque afinal tu não podes perceber o que é alguém inspirar-te, quando tu és a inspiração de alguém todos os dias – a minha diria eu, se me pudesses escutar para entender – não concordas comigo? Mas eu vou tentar explicar-te, porcelana preciosa.
Eu gosto de te desnudar – ou trocar-te as roupas – porque cada vez que te dispo, posso observar cada nódoa que trazes no corpo, e é isto que não sabes, mas eu julgo-as um sonho teu realizado – e tu tens tantas. E depois eu gosto sempre de acariciar as tuas cicatrizes, gosto de te passar um dedo ao de leve e seguidamente esfregá-las, esfregá-las com todo o carinho que possuo em mim, como se pudesse ficar igual a ti – manchada de sonhos.
É isso, para mim, tu não trazes nódoas no corpo, trazes sonhos, e eu poderia dizer-te que invejava isso em ti não fosses tu a minha boneca musa sonhadora, a pessoa mais bonita que se alçou na minha vida. És bonita, bonita mesmo, nesses teus calções de cor clara e nessa camisola de cor magenta – como te apresentas hoje – e és ainda mais bonita nesse teu interior – como te apresentas sempre - de cor do céu. É assim que o imagino: azul.
Azul por ser a cor do céu, por me parecer a mim que estás sempre tão perto de tocar nas alturas – por sonhares, sabes? E isso faz de ti uma figura tão discrepante de mim. Eu que te pareço corajosa, sou mais frágil que tu, e contenho um interior mais escuro que o teu – diria cinzento se soubesse qual era a cor do medo.
E é nesta grandiosa afeição que te trago, que me vou confessando: eu tenho medo de sonhar, minha boneca frágil – ou diria antes destemida. Talvez por isso, é que tu me chames de pessoa – ainda que a tua querida pessoa – pessoa. Chamas-me pessoa porque eu tenho medos – até medo de sonhar. Dentro do teu íntimo, sabes que não sou possuidora de alento algum, nem da arte de sonhar, e por isso – ainda que inconsciente – chamas-me de pessoa. Enquanto eu te chamo de boneca. Porque os bonecos são para nos fazer felizes – como tu me fazes a mim – são para nos tirar os medos da noite, são para nos fazer imaginar, imaginar para sonhar.
Lamento que ainda não tenhas descoberto que eu sou feita de vidro – não de porcelana – de vidro. Vidro comum e com alguns pedaços partidos, por me ter desnudado e por previsivelmente me terem roubado a arte de sonhar. É por isso, boneca de porcelana, que eu não gosto que te toquem – além de mim – porque não quero que tu fiques feita estilhaços de vidro e com medo de sonhar. Não quero que fiques igual a mim.
A fragilidade – que na verdade é uma máscara que transportas para a tua coragem – achas ser o que te restou, e eu digo, que de tudo o que detive, tu és a única ente que ainda me pertence - fossemos nós humanos ser algum dia pertences de alguém – tu és a única ente que ainda não se quebrou em mil. Ainda permaneces inteira, na pouca carne que sobreviveu, no meu coração, aos estilhaços de vidro – os que me foram espetando. Tu ainda és a única ente que não partiu nada em mim. E lamento que não tenhas notado que o caminho que tomo é – todo - na ânsia de proteger o teu coração, para poder acolher o que ainda sobra de mim: a inspiração por ti.

segunda-feira, maio 2

Qual a moral da história? VI


Eu tenho saudades do que já me deste.

Tu tens saudades do que ainda não te dei.




Então eu tenho saudades tuas.

Enquanto tu tens saudades de alguma coisa.


Porque poderá nunca ser mais que uma fantasia. Poderia ou não vir.
Não devia  ser errado sentir saudades do que se pode esperar? Tão errado, como não sentires saudades presentes - do quando nos damos.